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Thiago Barbosa é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.

Thiago Barbosa é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Thiago Barbosa é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins. Thiago Barbosa é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.

Vive-se uma época marcada pela aceleração da comunicação e pela compressão do tempo, em que a linguagem, cada vez mais instrumentalizada ou reduzida, parece ceder à lógica da eficiência em detrimento da profundidade. O empobrecimento vocabular não é, portanto, apenas um problema gramatical ou lexicográfico, trata-se de um fenômeno que denuncia a erosão das capacidades de significar, de pensar e de nos relacionarmos com o mundo. A esse respeito, a obra A origem da linguagem, de Eugen Rosenstock-Huessy (historiador alemão no século XX), oferece uma chave interpretativa contundente.

Para Rosenstock-Huessy, a linguagem não surge da necessidade de nomear objetos ou de organizar sistemas lógicos, como sugerem certas perspectivas cientificistas ou estruturalistas. Ela emerge, antes, do clamor da vida social: das ordens, súplicas, bênçãos e maldições que fundam a convivência humana. A palavra, para ele, é ato; é força que mobiliza, convoca, transforma. Reduzir a linguagem a mero meio de transmissão de informações seria, pois, empobrecer sua potência originária.

Nessa esteira, o empobrecimento vocabular contemporâneo revela algo mais profundo: a perda de intensidade nas relações humanas e no próprio exercício da consciência histórica. Quando o vocabulário retrai, junto com ele retraem-se as possibilidades de nomear experiências complexas, de nuançar sentimentos, de pensar criticamente. Não é à toa que discursos extremistas, simplificações grotescas e palavras esvaziadas de sentido proliferam-se: sem vocabulário amplo, o pensamento torna-se refém do imediatismo e da reatividade.

Na vida cotidiana, esse empobrecimento manifesta-se de maneiras muitas vezes sutis, mas sintomáticas. Tome-se, por exemplo, o uso excessivo da palavra “coisa”. “Pegue aquela coisa”; “gostei da coisa que você falou”; “é uma coisa muito legal”. Quando tudo vira “coisa”, a singularidade das experiências dissolve-se. Perde-se a precisão, o cuidado com o nomear. Outro exemplo: o vocabulário emocional reduzido a “top”, “massa”, “amei” ou “deprê”. Emoções ricas e variadas acabam comprimidas em adjetivos vazios, dificultando a expressão plena dos afetos e até o reconhecimento de estados internos mais complexos, como a melancolia, o encantamento ou a inquietude.

Além disso, nas redes sociais, observa-se o uso recorrente de fórmulas repetitivas e emojis para substituir palavras. Embora essas práticas tenham sua legitimidade comunicativa, o problema surge quando se tornam hegemônicas, atrofiando o esforço de nomear o mundo com densidade. Quando um jovem diz “tô morto” para expressar desde o cansaço até o riso ou o tédio, o sentido torna-se indistinto e a linguagem, cada vez mais, um ruído de si mesma.

Nesse mesmo direcionamento, há um fenômeno particularmente preocupante: o desmantelamento das comunicações ritualísticas (nas quais há hierarquia de saber e de desempenho). Em contextos institucionais, sociais e cerimoniais, certos usos linguísticos sustentam o distanciamento simbólico necessário para demarcar papéis e responsabilidades. Pronomes como “Vossa Excelência”, “Vossa Senhoria” ou mesmo “Senhor(a)”, que outrora compunham a linguagem jurídica, acadêmica ou cerimonial, vêm sendo substituídos por pronomes indiferenciados, como “você” ou simplesmente a omissão do pronome. A linguagem que deveria marcar o lugar do outro no espaço do respeito e reconhecimento torna-se plana, neutra, desidratada.

Essa neutralidade não é, como muitos supõem, uma forma de inclusão, mas frequentemente de apagamento simbólico. Ao abolir o tratamento formal, perde-se a consciência dos contextos em que o falar é também um gesto de reconhecimento da hierarquia, da autoridade ou da solenidade. Um aluno que diz “e aí, prof.?”, um requerente que se dirige ao juiz com um “você pode ver isso pra mim?”, ou um e-mail institucional que começa com “Oi, tudo bem?” dirigido a um reitor, não são apenas informais, são sintomas de uma erosão do valor simbólico que sustenta a convivência institucional.

Rosenstock-Huessy assevera que a linguagem é o elo entre o tempo e o sujeito. Ela guarda o passado (na tradição), aponta para o futuro (na promessa) e organiza o presente (na ordem e no apelo). Quando o vocabulário é empobrecido, essa relação quebra-se simbolicamente. Atualmente, vive-se mais no instantâneo do que no histórico, mais no impacto do que no significado. Consequentemente, a linguagem reduzida é um reflexo de “um tempo que esqueceu o tempo”.

Isso não significa negar a vitalidade da linguagem popular, das gírias e dos neologismos, formas legítimas de reinvenção linguística. Mas tais inovações não deveriam dar-se à custa do apagamento do vocabulário herdado, da expressividade metafórica e da diversidade dos registros de fala. Há uma diferença fundamental entre expandir a língua e achatá-la.

Retomar a linguagem como espaço de encontro, de escuta e de transformação é, portanto, tarefa de suma importância. Isso passa por revalorizar um vocabulário rico, enraizado, plural. Assim, ler autores como Rosenstock-Huessy é também um gesto de resistência contra a banalização da palavra. Afinal, como ele próprio ensina, a linguagem não é um espelho do mundo, mas sua própria condição de possibilidade.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.