Alguém, despindo-se do viés ideológico, crê que o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF), será justo? Alguém efetivamente crê que o relator do feito, ministro Alexandre de Moraes, emitirá seu voto sem qualquer reflexo do efeito primazia ou será em consonância cognitiva? Para responder a estas questões se faz necessário fazer uma breve digressão sobre o que vem a ser dissonância cognitiva (revés de consonância cognitiva) e o efeito primazia.
A dissonância cognitiva é um conceito da psicologia proposto por Leon Festinger em 1957. No contexto do processo penal, a dissonância cognitiva pode se manifestar quando um julgador enfrenta situações em que suas crenças, valores ou decisões anteriores entram em conflito com novas evidências ou argumentos apresentados durante o julgamento.
Situações comuns de dissonância cognitiva no processo penal, são: convicção prévia, pressão social e institucional e juízo de valor sobre as partes.
Convicção prévia: O julgador pode formar uma convicção (mesmo que inconsciente) a partir das fases iniciais do processo, antes da produção de todas as provas. Se surgem evidências posteriores que contradizem essa primeira impressão, a tendência pode ser justificar a decisão inicial (buscando argumentos que a sustentem), ao invés de reavaliar de forma realmente imparcial. Pressão social e institucional: Um julgador pode sentir-se pressionado a condenar ou absolver com base na expectativa da sociedade, da mídia ou até do Ministério Público e da Polícia, mesmo que as provas apresentem dúvidas razoáveis. Juízo de valor sobre as partes: Se um juiz já percebe o réu, vítima ou testemunha com determinado estigma, pode ser mais difícil mudar a percepção ao longo do processo, mesmo diante de provas contraditórias.
A dissonância cognitiva representa um risco real de prejuízo à imparcialidade, pois o juiz pode, sem perceber, buscar reduzir sua própria sensação de desconforto ignorando fatos desfavoráveis à sua convicção anterior ou reinterpretando-os para que se encaixem na sua decisão inicial. Podemos resumir em duas hipóteses: (a) existindo dissonância cognitiva haverá também uma pressão involuntária e automática para reduzi-la; e, (b) quando há essa dissonância, além da busca pela sua redução, há também um processo de evitação ativa de contato com situações que possam aumentá-la.
Um exemplo perceptível dos reflexos da dissonância cognitiva no processo penal no âmbito da justiça brasileira é aquela atrelada ao juiz que já decretou uma prisão preventiva, durante a fase pré-processual (investigação realizada pela polícia judiciária), e, mantendo-se na presidência do feito, chegando ao momento de proferir sentença, irá, inequivocamente, buscar apenas os elementos confirmatórios de sua percepção inicial ou, ainda, olvidará, em absoluto, de todos os elementos de prova favoráveis aos réus. Ele pensará intimamente: “Se eu prendi, é porque o réu parecia culpado”. Assim, a tendência natural é justificar a própria decisão, buscando confirmar seu julgamento anterior. Não há como, em tais situações, entender que não há um comprometimento a necessária imparcialidade que deve reger a função judicante.
O efeito primazia (ou "primacy effect", da psicologia cognitiva) é um fenômeno em que as primeiras informações recebidas sobre um fato, pessoa ou situação tendem a ter um impacto desproporcionalmente grande na formação de impressões e decisões subsequentes. Ou seja, as informações iniciais "marcam" o tom e influenciam a forma como informações posteriores são interpretadas.
O juiz que tem contato antecipado com uma narrativa (por exemplo, com a investigação) pode ser mais influenciado por essa versão, tendendo a lhe dar mais credibilidade e contextualizar as provas futuras a partir desse "marco inicial". O magistrado que participa de atos investigatórios (como ocorre em sistemas inquisitivos ou, até mesmo, em fases do inquérito policial) pode ser mais suscetível ao efeito primazia, tendo dificuldade de se desvencilhar da impressão formada na fase pré-processual.
No processo que envolve o ex-presidente Bolsonaro, conforme amplamente conhecido por todos, foi presidido e ainda continua a ser pelo Ministro Alexandre de Moraes. O Ministro Alexandre, para proferir um julgamento imparcial, conseguiria se afastar das primeiras impressões que teve durante as investigações? Lembrando que o Ministro decretou centenas de medidas cautelares, inclusive prisões preventivas.
Considerando a animosidade entre os integrantes do governo Bolsonaro com o Ministro Alexandre, inclusive com severas críticas e até xingamentos públicos (manifestações), será colocada de lado pelo Ministro no momento de proferir seu voto?
Em que pese o ex-presidente tenha em seu interrogatório, realizado no último dia 10, implicitamente, reconhecido que discutiu a decretação de um estado de sítio com seus aliados, bem como que os indícios de que houve um movimento ou, no mínimo, uma sondagem de campo em relação a implementação de um golpe de estado, que direta ou indiretamente culminou nos atos de 8 de janeiro de 2023, não podemos nos esquecer que um julgamento somente será justo quando proferido por magistrado imparcial, sem qualquer contaminação psicológica decorrente do acesso prévio aos fatos, o que está longe de ser observado na espécie.
Alexandre de Moraes atuou fortemente durante as investigações, extraiu delas as suas primeiras impressões, as que levaram a tomar medidas cautelares, inclusive a decretação preventiva de centenas de pessoas. Como imaginar, caros leitores, que ele não sofrerá as implicações de tudo isso.
Em um Estado Democrático de Direito, a figura do juiz deve ser equidistante das partes e ser receptor das provas produzidas durante a instrução processual, momento em que, após as partes, em igualdade de oportunidades, apresentam suas alegações, emitirá sua decisão, sem os efeitos do contato prévio com as investigações, como ocorreu enormemente no processo que julga o Presidente Bolsonaro.
Dessa forma, independentemente da análise de fundo do processo que julga o ex-presidente, o seu julgamento não será justo e sua condenação é inevitável. Essa é a justiça que queremos?
*Marcelo Aith é advogado criminalista. Doutorando Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca - ESP. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidad de Salamanca.