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Opinião

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Sempre existiram duas formas de compreender a ação, uma idealizada, outra realizável. A melhor maneira de explicar o fenômeno da dualidade entre o ideal e o concreto é recorrer à vulgata da teoria das formas de Platão e, por conseguinte, estendê-la ao mundo das ocorrências cotidianas. As formas perfeitas, alcançadas apenas pela razão treinada pelos meandros da reflexão, são etéreas, não sendo vistas aos olhos humanos; são, em um sentido mais coloquial e mais contemporâneo, aparelhos de cognição, que servem para dar liame ao conhecimento. Não há nada de muito complexo em entender um uso metonímico que se faz dos objetos da razão. Ora, mas como esse tipo de teorização relaciona-se à vida e suas disposições diárias? 

Quando se diz que um cão pertence à raça doberman, emprega-se a idealização do coletivo da raça do canino, isto é, existe tão-somente o cão, ou os cães, porém, o conceito de doberman, como um tipo de animal com determinados traços similares, permite seu agrupamento ideal. Aqui jaz uma derivação aristotélica da teoria das formas. Por meio dela, é possível entender que o mundo concreto, com seus matizes, encontra-se um tanto quanto distante do que se diz sobre ele. Mesmo assim, todos compreendem, de modo mais ou menos espontâneo, a relação do ideal com o concreto. Muitos, é claro, a idealizam porque entendem o primeiro como o norte do segundo. Até pode ser, entretanto, fica mais bem adaptada tal crença ao romance ou aos filmes de comédia romântica. 

Todavia, a mais interessante explicação analógica da relação entre idealidade e concretude, essa como sendo a vida realmente experienciada, encontra-se no âmbito da política, ou melhor, da atuação política. A política, bem como a sociedade, é abstrata, portanto, é feita de seres e de ações concretas. Cobra-se da política, por um movimento metonímico equivocado, o que cabe exclusivamente ao político, o agente empírico, que responde por sua atuação. Nesse direcionamento, tem-se uma confusão na compreensão dos papéis, uma vez que só há política porque existem políticos.

Com efeito, um dos mais recorrentes equívocos no imaginário popular reside na exigência contínua de uma instância que não se materializa senão por meio de seus agentes: a política, tomada como ente autônomo, é, paradoxalmente, alvo de cobranças como se tivesse vontade própria ou existência substancial. Tal movimento revela, em sua raiz, uma dissociação entre o ideal e o concreto, entre a política enquanto campo abstrato de princípios normativos e o político enquanto sujeito atuante, encarnado na tessitura da realidade. Cobra-se da abstração a realização do ideal, e isenta-se o agente de sua responsabilidade direta pela frustração das expectativas que ele mesmo alimenta ou negligencia.

Ao colocar a política como objeto de censura ou de exigência, muitas vezes se constrói uma estratégia inconsciente, ou ideologicamente induzida, de deslocamento da culpa, de atenuação da responsabilização do político. O sistema de representação, como foi concebido nas democracias liberais, pressupõe que a política realize nas ações de indivíduos. Contudo, o que se verifica na prática é um teatro de sombras: cobra-se do pano de fundo e ignora-se o protagonista. Tal lógica produz um jogo vicioso de desobrigação, no qual os políticos valem-se da abstração do sistema para se camuflarem, ao passo que os cidadãos, por não compreenderem a mediação entre ideal e efetividade, dirigem suas frustrações ao conceito, não ao executor.

Eis, pois, o núcleo da armadilha: ao não discernir o “locus” da ação, que é sempre concreto, situado, exercido por sujeitos, a sociedade alimenta a permanência de estruturas ineficazes, de práticas viciadas e de um ethos político apático, enquanto se aferra a uma “política ideal” cuja função é servir de utopia de alívio, não de horizonte de transformação. O ideal é necessário, sim, mas como tensão, como impulso de aprimoramento, jamais como subterfúgio para a inércia.

Encerrar este breve texto exige reconhecer, com clareza e rigor, que a maturidade política de um povo reside não na esperança por sistemas perfeitos, antes, na lucidez de compreender que toda forma de política é encarnada, e que toda encarnação exige vigilância, crítica e participação. A política não é um ente mítico, mas uma prática humana, demasiado humana. Que se deixe, pois, de fustigar a sombra do conceito e passe-se a iluminar os rostos daqueles que, a cada legislatura, a cada decisão, a cada omissão, dão-lhe forma concreta, para o bem ou para o mal. Só assim, talvez, o povo poderá passar de vítima do desencanto cívico e passar a ser artífice da superação de tal frustração.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.