Recentemente, a 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a improcedência de uma ação movida por familiares de uma paciente idosa contra um hospital público estadual. A decisão reafirmou dois pilares essenciais na prática médica: a autonomia do paciente e a autonomia técnica do médico.
O caso envolveu uma idosa, Testemunha de Jeová, que sofreu fratura de fêmur e recusou a cirurgia indicada pela equipe médica por envolver transfusão de sangue, procedimento vedado por suas convicções religiosas. A família alegou que o hospital teria permanecido inerte diante da recusa e não teria buscado alternativas. Entretanto, a prova nos autos demonstrou que a instituição tomou providências concretas: buscou vaga em outro hospital que realizasse a cirurgia sem transfusão e manteve acompanhamento da paciente.
O reconhecimento da conduta médica
O acórdão destacou que o hospital não só respeitou a vontade da paciente e de sua família, como também procurou garantir a assistência dentro das limitações impostas pela recusa. Ou seja, o dever de assistência foi cumprido.
Esse ponto é central. Muitas vezes, decisões judiciais acabam analisando a conduta médica sob uma ótica meramente retrospectiva, desconsiderando que, no momento da atuação, o profissional enfrenta variáveis clínicas, estruturais e éticas. Aqui, o Judiciário reconheceu que não havia omissão, mas sim atuação diligente dentro dos limites possíveis.
Autonomia do paciente x autonomia do médico
A Constituição Federal assegura, no art. 5º, VI, a liberdade de crença. Em 2023, o Supremo Tribunal Federal reafirmou que pacientes adultos e capazes podem recusar transfusões de sangue por convicção religiosa, desde que cientes dos riscos e consequências.
Por outro lado, a autonomia do médico, prevista no Código de Ética Médica, garante que o profissional não seja compelido a adotar condutas que contrariem sua formação técnica ou exponham o paciente a risco injustificado.
No caso, a equipe respeitou a recusa, mas também avaliou os riscos clínicos: a paciente apresentava anemia, insuficiência cardíaca e respiratória, além de alto risco cirúrgico sem transfusão. Assim, a busca por alternativa era obrigatória, mas a execução de um procedimento tecnicamente inseguro não poderia ser imposta ao profissional.
Essa decisão representa o reconhecimento da atuação diligente do hospital e da equipe médica, o reforço da importância do registro médico completo: prontuários e protocolos documentaram todas as tentativas de atendimento, sendo decisivos para a vitória judicial e o equilíbrio entre direitos fundamentais: liberdade religiosa do paciente e autonomia técnica do médico
Lições para a prática médica
Documentar todo o processo de decisão: especialmente quando há recusa de tratamento, deve-se colher termo de recusa assinado e registrar condutas adotadas.
Buscar alternativas viáveis: mesmo diante de recusas, o médico deve procurar soluções técnicas adequadas, ainda que isso envolva transferência de unidade.
Manter comunicação clara com a família: explicando riscos, benefícios e limitações das condutas disponíveis.
Essa decisão é uma vitória não apenas para a instituição de saúde, mas para toda a classe médica. Reforça que a atuação ética, fundamentada e documentada é a melhor blindagem contra responsabilizações indevidas. Ao mesmo tempo, preserva o direito do paciente à recusa, desde que compatível com a segurança técnica e com os limites da medicina.
No fim, trata-se de respeitar dois princípios que devem caminhar juntos: a liberdade de escolha do paciente e a liberdade técnica do médico. Quando ambos são observados, o Direito e a Medicina atuam em harmonia, e a Justiça tende a reconhecer isso.
*Daniela Junqueira Andrade é advogada com foco em Direito Médico, graduada em Direito pela Universidade Católica do Tocantins. Pós-graduada em Direito do Consumidor, com curso de extensão em Direito Civil e Processo Civil, além de formação em Conciliação. Atua na assessoria jurídica de profissionais da saúde, com ênfase em responsabilidade civil, contratos médicos e estratégias de prevenção de riscos jurídicos na prática clínica.