No Projeto de Assentamento Pirarucu, município de Formoso do Araguaia, no sudoeste do Tocantins, vivem dois agricultores com o mesmo nome: Pedro Pereira. A coincidência não para por aí — eles têm outras duas coisas em comum: jovens familiares acometidos por tumores e uma forte suspeita de que a contaminação por agrotóxicos esteja por trás desses diagnósticos.
O neto de Pedro Pereira Mendes, hoje com 18 anos, tem um tumor raro no cérebro. “Desde criancinha ele chorava dizendo que estava com dor de cabeça”, relata Maria das Neves, esposa de Mendes, em entrevista durante uma tarde quente, na varanda de sua casa.
Somente aos nove anos, quando o menino reclamou que os amigos tiravam sarro de sua altura, os médicos tiveram um diagnóstico. “Ele não crescia, passou mais de um ano sem crescer, porque o tumor comia os hormônios de crescimento”, conta a senhora de cabelo branco preso em um coque.
O casal Pedro Pereira Mendes e Maria das Neves, moradores do assentamento Lagoa da Onça. (Foto: Tatiana Merlino)Já a filha do outro Pedro, Pedro Pereira Cruz, faleceu de câncer em setembro de 2023, aos 38 anos. O assentado prefere não falar sobre o assunto: “A vida é assim”, resume. Um de seus grandes amigos, morador da região, também perdeu um filho com a mesma idade e para a mesma doença.
“A gente vê muitos casos [de câncer], e são pessoas que conviveram ali dentro do foco do Projeto”, afirma. Escutando tudo da cozinha, enquanto preparam o almoço, a filha e a esposa de Pedro não se contêm: aproximam-se e começam a listar os vizinhos que apresentaram casos de câncer recentes. São tantos, em tantas famílias, que chegam a parecer uma banalidade – uma situação corriqueira.
O “projeto” ao qual o assentado se refere é o Projeto Rio Formoso, que fica nas margens do rio homônimo. É o maior empreendimento de agricultura irrigada da América Latina, ocupando quase 28 mil hectares, o equivalente à área de 28 mil campos de futebol, em Formoso do Araguaia.
Ele foi instalado na região nos anos 1980, durante a ditadura civil-militar (1964-1985), quando o território do Tocantins ainda fazia parte do estado de Goiás. Desde então, é gerenciado por cooperativas monopolizadas por grandes empresários.
Lá, se produz principalmente arroz irrigado no período de chuvas, e soja, na seca. O ciclo alternado significa mais do que uma produção dobrada: também indica que agrotóxicos são pulverizados durante o ano inteiro, sem intervalos.
Embora seja difícil de contabilizar o número exato dos casos de câncer na cidade, uma quantidade considerável de moradores é atendida no Hospital do Câncer de Barretos, em São Paulo. Dados mostram também uma alta ocorrência de mortes por câncer em Formoso do Araguaia. E pesquisas indicam a relação entre uso de agrotóxicos e incidência de casos oncológicos.
O Projeto Rio Formoso fica a menos de um quilômetro do assentamento Pirarucu e a 14 quilômetros do assentamento Lagoa da Onça, ambos criados no fim da década de 1990. Esse último é vizinho de outro projeto de arroz irrigado, a Companhia Brasileira de Agropecuária (Cobrape), fundada em 1982. Em março de 2025, o Joio esteve na região: foi conhecer o Projeto Rio Formoso, entrevistou moradores dos dois assentamentos e do município de Formoso do Araguaia.
Uma placa enorme e descascada indica que chegamos ao Projeto. A pessoa que nos acompanha conversa com o segurança para liberar a entrada. É tudo imenso. As estradas são largas e os canais de irrigação que formam o projeto também: há o maior, de 80 metros de largura, e outros menores, de 20 metros.
A área de monocultura é tão grande que não é possível ver onde acaba. Tratores e caminhões circulam pra lá e pra cá. Visitamos uma das cooperativas, que recebe arroz de vários produtores e faz o beneficiamento.
A proximidade física e trabalhista com os projetos agrícolas é um denominador comum entre as pessoas ouvidas pela reportagem. A proximidade com pacientes oncológicos também.
O filho mais novo de Pedro Pereira Mendes, por exemplo, trabalhou por muitos anos no Projeto Rio Formoso e, assim como o neto do casal, sofre com dores de cabeça. “Ele mexia com veneno. Lá, quando tira um já planta outro, é zoada de avião de agrotóxico direto”, afirma.
"Sai gente para Barretos toda semana"
José Olímpio é morador do Assentamento Lagoa da Onça. Sua mãe, aos 80 anos, tratou um câncer de reto no Hospital de Amor, nome atual do Hospital do Câncer de Barretos, em São Paulo. Distante 1.234 quilômetros, a cidade paulista é um destino comum para os moradores da região.
Essa distância é justamente uma dificuldade na hora de checar os dados sobre a origem de casos de câncer. A confirmação da informação não é simples. O diagnóstico costuma ocorrer em hospitais especializados em municípios maiores, para onde os pacientes se mudam temporariamente para tratamento, dificultando entender de onde vieram.
José Olímpio diz que Formoso do Araguaia lidera os municípios tocantinenses em incidência de câncer. O Joio questionou a Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins (SES-TO) sobre a afirmação, mas não obteve resposta
Dessa forma, entender a incidência de câncer por município ainda é um “problema”, como explica Mariana Rosa Soares, enfermeira e doutora em Saúde Coletiva. “Além disso, no geral, os estados não têm registros atualizados, então a notificação do câncer é um problema”, avalia.
Mas a suspeita dos assentados não é infundada. Soares estuda exatamente a relação entre uso de agrotóxicos e incidência de câncer no Núcleo de Estudos Ambientais, Saúde e Trabalho (Neast) da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), referência em pesquisas sobre o assunto no país.
A enfermeira tem estudos que mostram uma alta na incidência e na mortalidade por câncer infantojuvenil em jovens moradores de municípios sojeiros no Mato Grosso, marcados pelo alto consumo de agrotóxicos, como Lucas do Rio Verde, Sinop e Sorriso .
Para isso, o Neast mapeia principalmente os prontuários de hospitais regionais. A pesquisa de Soares mostra, por exemplo, que mais de 60% dos pacientes infantojuvenis do Hospital do Câncer em Cuiabá vêm desses municípios tomados pelo agronegócio.
O Joio solicitou ao Hospital de Amor de Barretos os dados de pacientes naturais de Formoso do Araguaia. O hospital, como o Projeto Rio Formoso, também ostenta um pódio latino-americano: o de maior centro de tratamento oncológico gratuito do continente.
Somente em 2024 o hospital realizou 905 atendimentos para 325 pacientes que indicaram Formoso do Araguaia como seu município de origem. O número é bastante alto. Para se ter dimensão, o total de pessoas atendidas representa 1,7% da população total de 18.881 habitantes do município tocantinense.
A mãe de José Olímpio não foi a única moradora de Formoso do Araguaia que viajou mais de mil quilômetros para se tratar em Barretos. De acordo com as pessoas que entrevistamos, é para lá que vai a maior parte dos pacientes oncológicos no município. "Sai gente para Barretos toda semana", conta o assentado.
Elziná Cabral Ferreira, articuladora do Centro de Direitos Humanos de Formoso (CDHF), também menciona o hospital como destino comum dos moradores. “A gente conhece um monte de gente se tratando em Barretos, um atrás do outro. É assombrador".
Elziná Cabral Ferreira, do Centro de Direitos Humanos de Formoso, diz que o hospital é destino comum dos moradores. (Foto: Tatiana Merlino)Os habitantes de Formoso do Araguaia, no entanto, relatam não apenas uma alta incidência: também revelam uma alta mortalidade pela doença. Nelsa Pereira Barros, moradora do assentamento Lagoa da Onça, fala sobre o alto número de óbitos por câncer no município. “Morre gente demais, todo mundo fica besta".
Segundo Vanessa Neves, filha de Pedro Pereira Mendes, os óbitos de jovens têm crescido na região. “Cada vez mais gente jovem vai morrendo, antigamente a gente não via isso. Hoje a criança já nasce com câncer.” Ela lembra do caso da filha de um conhecido do Projeto de Assentamento Araguaia, vizinho ao Lagoa da Onça. A menina faleceu de câncer aos 10 anos de idade. "Ela sofreu demais, nossa, essa menina sofreu".
"Mesmo que o médicos tenham consciência da intoxicação, eles não falam"
Numa manhã quente de domingo, os moradores da região se reúnem para pescar. Calmamente. Os peixes mais fáceis de pegar não estão nos rios, mas nos imensos canais do Projeto. É ali, da água recém-escoada de lavouras tratadas com venenos e fertilizantes químicos, que sai a carne que vai abastecer as mesas dos camponeses.
Seguindo o caminho das imensas tubulações que abastecem os canais, chega-se ao rio. É de lá que a água é tragada, aos milhões de litros, quando as plantações demandam, e é para lá que elas retornam, levando venenos e o que mais vier.
O Tocantins é um dos estados brasileiros com mais registros históricos de intoxicação por agrotóxicos, segundo a publicação “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”, elaborada pela geógrafa da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Bombardi.
O município vizinho a Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão, é um dos líderes desse ranking. Em 2024, ele foi o 19º município brasileiro com mais casos registrados, perdendo para cidades com populações consideravelmente maiores, entre elas, oito capitais.
Entretanto, foram apenas 35 registros de intoxicação. Já Formoso do Araguaia registrou apenas dois casos no mesmo ano, e apenas 25 na série histórica do SUS, que começou a ser realizada em 2009.
Esses dados, porém, tampouco são confiáveis. A subnotificação de intoxicação por agrotóxicos no Brasil é fato conhecido dos pesquisadores da área. Nos cálculos científicos, ela é estimada na ordem de 50 vezes - ou seja, para cada caso notificado haveria em torno de 50 não notificados.
Essa lacuna nos dados acontece tanto pela ignorância dos sintomas da intoxicação nas unidades básicas de saúde quanto por pressões diretas e indiretas do agronegócio sobre trabalhadores contaminados e sobre servidores da saúde.
Uma funcionária do Hospital Municipal de Formoso do Araguaia afirma que por lá chegam muitos trabalhadores do Projeto Rio Formoso com intoxicação. “Mas não tem um que tenha coragem de passar a informação correta. Os médicos que diagnosticam têm medo, registram como uma coisa comum. Eu até tento olhar o que eles escrevem, e é só ‘chegou passando mal, com falta de ar’. Mesmo que os médicos tenham consciência, eles não falam”, revela.
Ainda que não houvesse uma omissão nos registros, os dados representam apenas os casos agudos de intoxicação. Doenças crônicas provocadas por anos de exposição a agrotóxicos, como é o caso do câncer, não são contabilizadas.
A reportagem consultou o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) e a Secretaria Estadual de Saúde sobre as intoxicações por agrotóxicos e os relatos sobre a alta incidência de câncer.
A SES-TO informou que “em toda a produção agrícola intensa, há o risco de exposição ocupacional e de intoxicação por agrotóxicos em trabalhadores”, e que atua há anos, via Cerest, com ações de prevenção de intoxicação dentro do Projeto Rio Formoso, bem como em ações voltadas à questão da água contaminação por agrotóxicos.
Captação de águas do Rio Formoso. (Foto: Tatiana Merlino)Sopa de agrotóxicos nas águas do Rio Formoso
Muitos agrotóxicos são apontados como prováveis ou possíveis carcinogênicos. Entre eles está o herbicida atrazina, um dos mais utilizados no mundo.
Um estudo conduzido pelo Laboratório de Pesquisa em Química Ambiental e de Biocombustíveis (Lapeq), da Universidade Federal do Tocantins (UFT), mapeou agrotóxicos nas águas do rio Formoso. A atrazina foi um dos produtos encontrados em maior concentração
Classificada como desregulador hormonal por uma robusta bibliografia científica, a atrazina é associada a problemas reprodutivos. Alguns estudos, porém, têm indicado também seu potencial cancerígeno.
"Ela causa lesão renal, mutagênese (mutações genéticas), teratogênse (impacto no desenvolvimento embrionário) e carcinogênese (formação de câncer)", afirma a pesquisadora do Neast, Mariana Soares.
Ainda assim, a Anvisa classifica o ingrediente como "improvável de causar dano agudo", para a saúde humana, embora também o classifique como "muito perigoso ao meio ambiente".
O estudo do Lapeq, que integrou a tese de doutorado de Patrícia Guarda Martins, professora da UFT, investigou a presença de 69 ingredientes ativos de agrotóxicos em diferentes pontos do corpo hídrico. Além da atrazina, outros 20 foram detectados. O herbicida clomazone também se destacou pelas altas concentrações.
Embora tenha sido identificada em diferentes pontos de coleta do rio, a contaminação da água por atrazina e por clomazone era até cinco vezes maior na água coletada após o rio margear o Projeto Rio Formoso.
Um detalhe importante é que, segundo a professora, o uso da atrazina para arroz e para soja, principais culturas do Projeto Rio Formoso, não era autorizado no Tocantins à época da coleta, entre 2018 e 2019. Entre as sub-culturas plantadas no projeto, o milho é o único que tem autorização para uso de atrazina.
A concentração dos ingredientes ativos identificados pelo Lapeq no rio Formoso ficou abaixo do limite brasileiro para contaminação de agrotóxicos em água. A professora Patrícia Martins avalia, porém, que o limite brasileiro é muito permissivo e sequer considera os potenciais danos da mistura de diferentes agrotóxicos na água.
"Quando a fala de limite, a legislação aborda princípios ativos isolados. Então, quando você tem uma sopa de agrotóxicos, como esses 21 que detectamos, você tem que levar em consideração que essas substâncias podem ter maior toxicidade", explica.
Mais sobre a atrazina
A atrazina foi proibida na União Europeia em 2004. A Suíça, sede da multinacional agroquímica Syngenta, que desenvolveu o ingrediente ativo, também proibiu o produto em 2012, mas segue exportando para diferentes países, incluindo o Brasil. Em 2021, o ingrediente foi o quinto agrotóxico mais vendido no país: foram 37 mil toneladas de atrazina comercializadas. Em 2023, o Ministério Público do Trabalho (MPT) chegou a entrar na Justiça para cobrar da Anvisa o cancelamento do registro da atrazina, alegando ser impossível falar em níveis seguros da utilização do ingrediente no Brasil. A atrazina também é o agrotóxico mais identificado em pesquisas que investigam a contaminação de águas no Brasil e no mundo.
Outros tantos detalhes desta apuração podem ser conferidas na íntegra na página O Joio e O Trigo. (Matéria escrita por João Peres,Tatiana Merlino e Julia Dolce diretamente de Formoso do Araguaia/TO e São Paulo/SP) (Matéria atualizada às 09h59min)




